domingo, 29 de março de 2009

Um dia para não ser esquecido

  Aquela esquina da rua Iraí foi sempre muito movimentada. No fim de tarde do dia 20, eu andava pela calçada junto aos outros, que iam e vinham com passos pouco mais apressados e ares receosos, algumas olhando para o chão, outras para o infinito. 

  E lá, sentada, estava aquela mulher pouco notada. Quando a observavam, era sempre como se sua presença fosse alguma ameaça, ou como se ninguém estivesse ali, pois logo em seguida viravam o rosto e seguiam em frente. Ela parecia não se incomodar. Apenas retribuia os olhares, mas não os encarava com agressividade, não roubava nem xingava. Era calada. Tinha a expressão triste e não demonstrava revolta. Devia ter quase sessenta anos, apresentava rugas, cabelho grisalho, pele morena, roupas sujas, rasgadas e aparentava ter alguma doença mental. Algumas vezes eu a vi se levantar, caminhar até o cesto de lixo e começar a revirá-lo, provavelmente em busca de comida ou algo que a interessasse. Quando uma criança passava, seu rosto se transformava e ela sorria.
  No instante em que eu a olhava quando andava por ali, um carro estacionou ao meu lado e vieram dois homens e uma mulher em sua direção. Eram do Programa de População de Rua da prefeitura. Aproximaram-se dela e tentaram convencê-la de que teriam que levá-la. Fiquei parada mais adiante e a vi entrar em pânico. Não agrediu as pessoas da equipe, entretanto dizia em voz alta que não podiam levá-la de seu lar. Chorava muito, repetindo que morava ali. Quando tocaram seus braços, gritou que fugiria e voltaria para aquela esquina de qualquer jeito. 
  Formou-se um círculo de curiosos em sua volta, assustados com aquela triste cena. Todos olhavam-na com muita pena, até que os três decidiram não encaminhá-la, porém disseram-lhe que retornariam. Em seguida partiram e cada um tornou a seguir seu caminho. Ela sentou-se no chão e voltou os olhos para baixo.
 Continuei andando e relembrando os acontecimentos. Era difícil compreender os motivos pelos quais ela queria continuar vivendo na rua e ainda chamar aquilo de lar. Se deixasse que a socorressem, teria uma casa de verdade, cama, roupas novas e comida, uma vida mais digna, como todos têm direito. De qualquer forma, eu tinha esperanças de não vê-la mais morando ali. 
  Duas semanas depois, no mesmo horário, me surpreendi com uma moça que conversava calmamente com a senhora e estava abaixada, bem próxima a ela. Não pude ouvir as perguntas e respostas, mas ambas estavam muito tranquilas e a moça sorria. Foi uma cena incomum. Enquanto seguia, vi pessoas observando, também surpresas. Uma mulher comentava com a amiga que a moça "devia ser outra maluca".
  Na semana seguinte, quando havia acabado de virar a esquina, ouvi estacionar um carro. Pude perceber a voz da senhora, que não parecia indignada. Para meu espanto, pela primeira vez ouvi risos. Me virei imediatamente e encontrei a moça junto aos dois rapazes e à mulher, que vieram nas semanas anteriores, diante da senhora com uma boneca nos braços, como uma criança recebendo um presente que esperava há muito tempo. Ela chamava a boneca de filha. Seu rosto havia se transformado e ela sorria. Abraçou-a com força, caminhou até o carro e partiu. Todos em volta estavam admirados.

S.C.P.S.

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